quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Recalque capitolino

(Este post foi escrito há muito tempo e ficou esquecido ali nos rascunhos. Só depois de publicar o post anterior, falando praticamente a mesma coisa, percebi que já tinha escrito algo parecido. Mas decidi publicar apenas pra mostrar de quantas maneiras diferentes consigo falar mal da terrinha)

Do fim de 2012  até hoje foi um loooooongo caminho, tanta coisa aconteceu, mas vou resumir numa frase com uma onomatopéia no final: voltei a morar em Capitolio, fuéin.

Se você não sabe, é onde nasci e vivi até sair pra morar em outro lugar quando passei na faculdade. É também o lugar de onde passei 17 anos querendo sair. Pois é.

Imagine a alegria (só que ao contrário) de voltar. Não só por ser um lugar do qual eu nunca gostei, mas também por ser um enervante exercício de encarar o tipo de pessoa que eu fui, de quem não tenho orgulho nenhum (exceto pelo potencial para vida loka na adolescência - sdds batom preto). Todos os dias vejo pessoas falando ou fazendo as maiores bizarrices do mundo e eu SEI que eu já fui essa pessoa, eu sei que tive muita sorte de sair pro mundo e abrir a cabeça, porque enquanto eu estava aqui, mesmo já sendo uma leitora compulsiva, nem a fina flor da literatura me impedia de só pensar e agir dentro da caixinha escura e apertada que chamarei de zeitgeist capitolino. Talvez não seja a palavra mais adequada, dado que zeitgeist é o espírito do tempo, e em se tratando de Capitólio é mais adequado falar de um espírito do tempo TODO, porque nada.muda. Nunca. É sério. Eu morei fora quase 20 anos, e as pessoas continuam fazendo as mesmas coisas, falando sobre as mesmas coisas. É uma curiosa jornada no tempo escutar meu filho adolescente repetindo as mesmíssimas gírias idiotas que eu falava. É claro que não faz tanto tempo assim que fui adolescente, mas veja, tem toda uma revolução social aí no intervalo, e nem a internet, que conseguiu transformar todo o fucking planeta, não mudou nadinha o zeitgeist capitolino. Ao menos não se pode dizer que não seja uma cidade exemplar no quesito "inabalável convicção em seus valores", não é?

Eu confesso que observo tudo de longe e que não faço nenhum esforço para me adaptar. Não vai dar, sabe? Sou filha da terra e tenho uma inabalável convicção de que tenho que correr pras montanhas o mais rápido possível. E que montanhas, viu? Temos muitas por aqui, que junto com o lago de Furnas fazem da paisagem local um maravilhoso cenário. E agora que a cota de elogios foi preenchida, voltemos à programação normal.

Podem me chamar de covarde, ingrata e o que mais acharem adequado, dizer que é muito feio eu falar mal do lugar onde nasci, que me acolheu e bla bla bla whiskas sachê, mas o fato é que não gosto, não sou obrigada, não me adapto e não sou a boazinha do sul de minas que contemporiza e diz que temos que valorizar a cultura localzzzZZZzzroinc. A cultura local entre os adolescentes, por exemplo, é chamarem-se de viado: "ei, viado, você vai no treino hoje?" "nó, viado, esqueci de trazer meu caderno, me empresta uma folha?" "vamos jogar FIFA, viado?". Adorável, né? Igualmente encantador é a prevalescência de 2 assuntos: quanto custou e onde comprou. IN-CRÍ-VEL, mas 99% das conversas giram em torno de grana ou de aquisições materiais. Eu dificilmente compro algo que não seja comida, então não tenho tido muito assunto. Ninguém quer falar sobre feminismo interseccional comigo, sobre o aumento do número de pessoas adeptas de relações livres ou sobre as possíveis dicas que o Martin dá ao longo das Crônicas de Gelo e Fogo, por isso eu sou grata por ter internet e livros. Estou me refugiando na bolha? SIM, por motivos de: evitando aborrecimentos decorrentes de estapear as pessoas na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapê.

Agora que destilei todo meu ódio desabafei, vou contar uma conversinha que ouvi hoje entre duas pessoas, tá fresquinha na memória:

- Fulana, você viu o que a Coisinha escreveu no facebook do Coisinho?
- Não, o que foi?
- Ela disse que agora está feliz, porque há algum tempo chegou a terminar com ele, mas que depois de um tempo ele ligou dizendo que ela fazia falta e ela percebeu que sentia o mesmo, e que a sorte sorriu pra ela porque decidiram voltar.
- Nossa, foi? Foi bonito o depoimento?
- A nem tanto, mas ficou feio pra ele, né?
- Como assim feio?
- Uai, ela ficou como a gostosona que terminou com ele e ele fazendo papel do bobo que correu atrás dela, né? Se fosse outro ia matar a Coisinha, imagina, falando lá que foi ele que foi atrás dela.

Daí eu parei de prestar atenção porque estava ocupada recolhendo meu queixo do chão.

Poucos poemas representam tanto o zeitgeist capitolino quanto Confidências do Itabirano, do Drummond. "Este orgulho, esta cabeça baixa", "oitenta por cento de ferro nas almas e esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação". Somos 80% ferro, e 20% pedra. É vergonhoso gostar de alguém e pedir pra esse alguém voltar. É esquisito ser terno. É tão absurdo e não usual um elogio ou uma demonstração de carinho que, quando é feito, há sempre a desconfiança que na verdade estamos "nos fazendo de gostosas". Esta pequena conversa entreouvida com assombroso espanto não deveria me impressionar, porque sempre foi assim. Não demonstramos nosso apreço pelas pessoas. Elogios só são permitidos se direcionados a mulheres e se referirem-se apenas à aparência. Nunca se diz a uma amiga o quanto ela é companheira. Não se diz ao colega que ele é brilhante. Não se diz à criança que ela é incrível e maravilhosa e que um dia vai crescer e se tornar cientista.

Daí eu lembrei da tristeza que foi ser uma criança devoradora de livros em uma cidade que não dá a mínima pra livros. Eu fui pra escola mais cedo do que devia porque eu era LOUCA pra aprender a ler. Eu aprendi a ler mais cedo que a maioria porque eu não suportava não saber o que estava escrito nos gibis. Eu saía escondida na hora do recreio pra ir pra biblioteca da escola e quando a bibliotecária descobriu, me proibiu de voltar. Eu era uma péssima jogadora de queimada, pique-esconde ou de qualquer outro jogo infantil, mas eu era uma excelente leitora, e por isso eu era bastante inteligente, mais que a média. Mas nunca, JAMAIS em minha infância me lembro de ter ouvido elogios quanto à minha curiosidade e inteligência. Eu era apenas a última pateta a ser escolhida pro time.

Levei muitos anos tentando desfazer o mal que estava feito, e obviamente não consegui. Por isso me tornei essa pessoa cruel e mimizenta, que fica falando mal da cidade onde nasceu e julgando os conterrâneos. Bem, eu disse que a cidade é cheia de defeitos, né? E também disse que sou filha da cidade. Uma filha que ama a mãe e lhe deseja tudo de bom, mas que prefere vê-la de longe, beeeem de longe.

2 comentários:

  1. Me vi no seu texto. Morei dois anos numa cidadezinha do interior do Paraná e quase morri. Era exatamente assim, em todos os sentidos (até nas conversas que giram em torno de grana ou de aquisições materiais, uff). E eu era, assim como você, a devoradora de livros. Pena que naquela época eu nem sabia o que era internet. Talvez eu teria agüentado um pouco melhor. Mas odiei tanto (e até meu pais, que era nascido lá), que acabamos voltando pra São Paulo, grazadeus. Quase 10 anos depois voltei lá pra ver a família e resolver alguns problemas e... tchaarã! Estava exatamente como era na minha adolescência. Deu até um certo pânico, porque por um instante senti que tinha voltado no tempo, naquela época horrorosa. É impressionante como lugares assim têm essa capacidade de não mudar, nunca, em hipótese alguma.

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    1. Isabela, eu sempre falo daqui como "O show de Truman". É perfeitamente igual.

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