O
que uma perfeita dona de casa faz nas horas vagas (vamos supor que sim, há
horas vagas no serviço doméstico)? Borda, faz pintura em tecido, aproveita pra
anotar as receitas da Ana Maria Braga? Então, era pra eu estar bordando, mas
né, a palavra "perfeita" não faz parte do título desse blog. Não que
eu não seja capaz, para seu conhecimento. Meu ponto-de-cruz tem o avesso
perfeito e é tão bem arrematado que uma toalha que bordei pro meu filho, há 8
anos atrás, está em frangalhos, mas o bordado permanece igual ao dia em que o
fiz, só um pouquinho desbotado. E você aí pensando que feministas não podem ser
prendadas, hein?
Esta dona de casa não só imperfeita, como também a pior delas, lê nas horas vagas. E estaria tudo dentro da normalidade instituída pelo patriarcado se minhas leituras se resumissem a chick-lit e àqueles romances de banca de revista, os populares Julia-Sabrina-Bianca. Já li, confesso. Mas depois de um certo tempo você não precisa ler nada além da sinopse pra saber exatamente o que vai acontecer à virginal/meiga/linda mocinha e ao misterioso/charmoso/másculo herói, então passa a procurar coisas mais interessantes. Bem, nem todos. Minha mãe e minha tia permanecem fiéis ao estilo (only god can judge).
Eu leio muito sobre feminismo. E direitos humanos. Estas leituras fizeram muita diferença na minha vida, muita mesmo. Consegui me libertar de muitos preconceitos. Consegui enxergar o mundo com outros olhos. Consegui aprender a me colocar no lugar do outro. Consegui entender que a regra de ouro (não faça aos outros aquilo que não quer que seja feito com você) não é tão de ouro assim, já que o que incomoda o outro nem sempre me incomoda, então este não é um parâmetro tão bom. Bom, dizer que consegui aprender é um pouco pretensioso. Digo que estou tentando aprender, é mais verdadeiro. Porque ainda tenho muito o que aprender.
Mesmo com o muito que ainda falta, posso dizer que foi uma grande mudança, motivada não só pelo feminismo, mas pelo olhar mais humanista que o feminismo me ajudou a ter. Ser eu mesma (o que eu vinha fazendo desde que me entendo por gente), ao contrário do que costumam dizer, não foi o melhor conselho. Eu sou resultado de muitos fatores, alguns não eram os melhores, os mais exemplares, adequados ou dignos de admiração. Eu poderia continuar sendo eu mesma, o resultado desse caldo, e creditar meus problemas aos tais fatores; ou poderia tentar mudar e aprender a ser a pessoa que gostaria de ser. Foi o que decidi.
É claro que ainda não sou esta pessoa (falta muito, mas muuuito), mas estou tentando aprender. Não é fácil nem indolor olhar pra mim mesma, identificar tudo de ruim e admitir que preciso mudar. Mas se eu quero um mundo melhor, ora, devo esperar que todo o resto da população resolva um dia ser mais legal, ou devo começar a mudança por mim mesma? Então, sabe aquela frase "pense globalmente e aja localmente"? Não se trata só de reciclagem (#ficadica).
Paralelamente à proposta de tentar ser uma pessoa melhor, tento também combater o que faz do mundo um lugar pior. Aquela velha história de escolher uma causa e lutar por ela. Pois é, a minha é o feminismo, mas não significa que não seja sensível a outras causas. Comecei querendo igualdade para mulheres, mas percebi que, se há igualdade para mulheres, mas não para homossexuais, não há igualdade. Não posso querer um mundo melhor pro meu filho e não querer também pro filho do vizinho. Então, minha causa é a igualdade. No more grupos dominantes no planeta, esta é a meta. É ambiciosa, eu sei. Mas não há plano para dominar o mundo que não comece com um pequeno passo, néam?
Este processo de mudança é doloroso não só porque olhar pra dentro é difícil, mas também porque me aprofundar no tema do sexismo abriu meus olhos, e agora não consigo mais não notar e não me incomodar com o machismo. E o pior é que as pessoas se recusam a aceitar que é machismo! "É só uma piada", sabe? Véi, naboua, nénão. É zombaria, é propagação de estereótipos, é ignorância, é MACHISMO. Porque o povo acha que machista é só neandertal que cata mulher com tacape e a leva pra caverna arrastada pelos cabelos, e não os idiotinhas de internet tipo Testosterona ou compartilhadores de Facebook. Eu, machista? Credo você é muito radical, nem posso fazer uma piadinha!
Como não posso injetar feminismo no cérebro das pessoas para que possam enxergar a realidade, eu tento explicar. Digo que aquilo é ofensivo, e porque é. Imagino que eu tenha autoridade pra falar sobre assunto, né, eu que sou mulher e sou o alvo das piadinhas. Mas não. Aparentemente, as pessoas se sentem no direito de julgar o que eu posso considerar como ofensa. Rola tipo uma listinha-de-motivos-pelos-quais-acho-que-as-pessoas-podem-se-sentir-ofendidas. Caso sua queixa não se encaixe ali, o cara diz "opa, aí, foi mal, mas você não tem o direito de se sentir ofendida com isso. Vou continuar fazendo minhas piadinhas, pare de mimimi e vá lutar contra a fome na África". O pior é que ninguém me deixa ver a listinha, sabe? Fico tão perdida!
Eu não perco a fé na humanidade porque sei, por experiência própria, que pessoas são capazes de mudar. Eu já fui esse cara, o da listinha. Eu já bati no peito com orgulho pra dizer que era politicamente incorreta. Eu já fui do tipo "Rafinha, tamo junto!". Pode me julgar, eu sei que mereço.
Foi com muita leitura e reflexão que consegui perceber que não quero ser esse tipo de pessoa, porque este não é o tipo de pessoa que faz do mundo um lugar melhor. Eu não quero ser alguém que, por não ter por que lutar, por estar em uma posição privilegiada (hello, homem-branco-hetero!), se acha no direito de decidir o que é ofensivo e o que não é. Se eu não sinto na pele, não posso questionar. É muita arrogância tentar questionar a causa do outro. Eu sou branca, então o que posso saber sobre ser alvo de discriminação racial? Sou hetero, o que posso saber sobre ser alvo de homofobia? Sou classe média, o que posso saber sobre sofrer preconceito por classe social? Só posso saber quando alguém, que sofre na pele, tem a bondade e a paciência de me explicar por que se sente ofendida. E eu posso pedir desculpas e me esforçar pra não repetir. Ou posso dizer que não abro mão do "direito" de me expressar do jeito que achar melhor, ainda que isso ofenda pessoas, como o cara da listinha.
Fiz uma escolha e convivo com ela. Sei que muitas pessoas me achavam super divertida porque eu não tinha o menor pudor em zombar das pessoas, propagar estereótipos e preconceitos, e que agora me acham chata e patrulhenta. Paciência. Assumo as consequências de ser quem eu sou. Para estar mais feliz comigo mesma abdico da amizade de alguns (considerando que seja amigo quem não te aceita como é e tenta te calar). E não posso abrir mão de ser respeitada como alguém que pensa, que é capaz de fazer escolhas inteligentes e que tem capacidade analítica suficiente pra julgar a realidade só para continuar sendo legal e divertida. Não faço mais piadas ofensivas, e não quer ser alvo delas. Se você insiste em fazê-las e eu digo que isso ofende o grupo ao qual pertenço, e minha reivindicação é menosprezada por não se encaixar na listinha-de-motivos-pelos-quais-as-pessoas-podem-se-sentir-ofendidas, estou sendo desrespeitada. E lamento, mas não respeito quem não me respeita. E não é porque eu me dou ao respeito que o mereço. Respeito é um pressuposto básico nas relações entre seres humanos, não importa a idade, sexo, cor, tamanho da saia, circunferência da coxa ou número de parceiros sexuais. Se você só respeita quem "se dá ao respeito", sinto informar, você é um babaca. Estou sendo dura? Bom, as qualidades que vejo atribuídas a mim em suas piadinhas também são: burra, fútil, interesseira (pra ficar só nas mais leves). E eu nem tenho direito de reclamar, porque minha solicitação não tá na listinha. Pra você ver como num tá fácil pra ninguém.
PS - Pessoas mais legais e inteligentes escreveram muito melhor do que eu sobre isso aqui e aqui.