quinta-feira, 28 de junho de 2012

Uma causa? Temos também!


O que uma perfeita dona de casa faz nas horas vagas (vamos supor que sim, há horas vagas no serviço doméstico)? Borda, faz pintura em tecido, aproveita pra anotar as receitas da Ana Maria Braga? Então, era pra eu estar bordando, mas né, a palavra "perfeita" não faz parte do título desse blog. Não que eu não seja capaz, para seu conhecimento. Meu ponto-de-cruz tem o avesso perfeito e é tão bem arrematado que uma toalha que bordei pro meu filho, há 8 anos atrás, está em frangalhos, mas o bordado permanece igual ao dia em que o fiz, só um pouquinho desbotado. E você aí pensando que feministas não podem ser prendadas, hein?

Esta dona de casa não só imperfeita, como também a pior delas, lê nas horas vagas. E estaria tudo dentro da normalidade instituída pelo patriarcado se minhas leituras se resumissem a chick-lit e àqueles romances de banca de revista, os populares Julia-Sabrina-Bianca. Já li, confesso. Mas depois de um certo tempo você não precisa ler nada além da sinopse pra saber exatamente o que vai acontecer à virginal/meiga/linda mocinha e ao misterioso/charmoso/másculo herói, então passa a procurar coisas mais interessantes. Bem, nem todos. Minha mãe e minha tia permanecem fiéis ao estilo (only god can judge).


Eu leio muito sobre feminismo. E direitos humanos. Estas leituras fizeram muita diferença na minha vida, muita mesmo. Consegui me libertar de muitos preconceitos. Consegui enxergar o mundo com outros olhos. Consegui aprender a me colocar no lugar do outro. Consegui entender que a regra de ouro (não faça aos outros aquilo que não quer que seja feito com você) não é tão de ouro assim, já que o que incomoda o outro nem sempre me incomoda, então este não é um parâmetro tão bom. Bom, dizer que consegui aprender é um pouco pretensioso. Digo que estou tentando aprender, é mais verdadeiro. Porque ainda tenho muito o que aprender.

Mesmo com o muito que ainda falta, posso dizer que foi uma grande mudança, motivada não só pelo feminismo, mas pelo olhar mais humanista que o feminismo me ajudou a ter. Ser eu mesma (o que eu vinha fazendo desde que me entendo por gente), ao contrário do que costumam dizer, não foi o melhor conselho. Eu sou resultado de muitos fatores, alguns não eram os melhores, os mais exemplares, adequados ou dignos de admiração. Eu poderia continuar sendo eu mesma, o resultado desse caldo, e creditar meus problemas aos tais fatores; ou poderia tentar mudar e aprender a ser a pessoa que gostaria de ser. Foi o que decidi.


É claro que ainda não sou esta pessoa (falta muito, mas muuuito), mas estou tentando aprender. Não é fácil nem indolor olhar pra mim mesma, identificar tudo de ruim e admitir que preciso mudar. Mas se eu quero um mundo melhor, ora, devo esperar que todo o resto da população resolva um dia ser mais legal, ou devo começar a mudança por mim mesma? Então, sabe aquela frase "pense globalmente e aja localmente"? Não se trata só de reciclagem (#ficadica).


Paralelamente à proposta de tentar ser uma pessoa melhor, tento também combater o que faz do mundo um lugar pior. Aquela velha história de escolher uma causa e lutar por ela. Pois é, a minha é o feminismo, mas não significa que não seja sensível a outras causas. Comecei querendo igualdade para mulheres, mas percebi que, se há igualdade para mulheres, mas não para homossexuais, não há igualdade. Não posso querer um mundo melhor pro meu filho e não querer também pro filho do vizinho. Então, minha causa é a igualdade. No more grupos dominantes no planeta, esta é a meta. É ambiciosa, eu sei. Mas não há plano para dominar o mundo que não comece com um pequeno passo, néam?
Este processo de mudança é doloroso não só porque olhar pra dentro é difícil, mas também porque me aprofundar no tema do sexismo abriu meus olhos, e agora não consigo mais não notar e não me incomodar com o machismo. E o pior é que as pessoas se recusam a aceitar que é machismo! "É só uma piada", sabe? Véi, naboua, nénão. É zombaria, é propagação de estereótipos, é ignorância, é MACHISMO. Porque o povo acha que machista é só neandertal que cata mulher com tacape e a leva pra caverna arrastada pelos cabelos, e não os idiotinhas de internet tipo Testosterona ou compartilhadores de Facebook. Eu, machista? Credo você é muito radical, nem posso fazer uma piadinha!


Como não posso injetar feminismo no cérebro das pessoas para que possam enxergar a realidade, eu tento explicar. Digo que aquilo é ofensivo, e porque é. Imagino que eu tenha autoridade pra falar sobre assunto, né, eu que sou mulher e sou o alvo das piadinhas. Mas não. Aparentemente, as pessoas se sentem no direito de julgar o que eu posso considerar como ofensa. Rola tipo uma listinha-de-motivos-pelos-quais-acho-que-as-pessoas-podem-se-sentir-ofendidas. Caso sua queixa não se encaixe ali, o cara diz "opa, aí, foi mal, mas você não tem o direito de se sentir ofendida com isso. Vou continuar fazendo minhas piadinhas, pare de mimimi e vá lutar contra a fome na África". O pior é que ninguém me deixa ver a listinha, sabe? Fico tão perdida!


Eu não perco a fé na humanidade porque sei, por experiência própria, que pessoas são capazes de mudar. Eu já fui esse cara, o da listinha. Eu já bati no peito com orgulho pra dizer que era politicamente incorreta. Eu já fui do tipo "Rafinha, tamo junto!". Pode me julgar, eu sei que mereço.


Foi com muita leitura e reflexão que consegui perceber que não quero ser esse tipo de pessoa, porque este não é o tipo de pessoa que faz do mundo um lugar melhor. Eu não quero ser alguém que, por não ter por que lutar, por estar em uma posição privilegiada (hello, homem-branco-hetero!), se acha no direito de decidir o que é ofensivo e o que não é. Se eu não sinto na pele, não posso questionar. É muita arrogância tentar questionar a causa do outro. Eu sou branca, então o que posso saber sobre ser alvo de discriminação racial? Sou hetero, o que posso saber sobre ser alvo de homofobia? Sou classe média, o que posso saber sobre sofrer preconceito por classe social? Só posso saber quando alguém, que sofre na pele, tem a bondade e a paciência de me explicar por que se sente ofendida. E eu posso pedir desculpas e me esforçar pra não repetir. Ou posso dizer que não abro mão do "direito" de me expressar do jeito que achar melhor, ainda que isso ofenda pessoas, como o cara da listinha.


Fiz uma escolha e convivo com ela. Sei que muitas pessoas me achavam super divertida porque eu não tinha o menor pudor em zombar das pessoas, propagar estereótipos e preconceitos, e que agora me acham chata e patrulhenta. Paciência. Assumo as consequências de ser quem eu sou. Para estar mais feliz comigo mesma abdico da amizade de alguns (considerando que seja amigo quem não te aceita como é e tenta te calar). E não posso abrir mão de ser respeitada como alguém que pensa, que é capaz de fazer escolhas inteligentes e que tem capacidade analítica suficiente pra julgar a realidade só para continuar sendo legal e divertida. Não faço mais piadas ofensivas, e não quer ser alvo delas. Se você insiste em fazê-las e eu digo que isso ofende o grupo ao qual pertenço, e minha reivindicação é menosprezada por não se encaixar na listinha-de-motivos-pelos-quais-as-pessoas-podem-se-sentir-ofendidas, estou sendo desrespeitada. E lamento, mas não respeito quem não me respeita. E não é porque eu me dou ao respeito que o mereço. Respeito é um pressuposto básico nas relações entre seres humanos, não importa a idade, sexo, cor, tamanho da saia, circunferência da coxa ou número de parceiros sexuais. Se você só respeita quem "se dá ao respeito", sinto informar, você é um babaca. Estou sendo dura? Bom, as qualidades que vejo atribuídas a mim em suas piadinhas também são: burra, fútil, interesseira (pra ficar só nas mais leves). E eu nem tenho direito de reclamar, porque minha solicitação não tá na listinha. Pra você ver como num tá fácil pra ninguém.


PS - Pessoas mais legais e inteligentes escreveram muito melhor do que eu sobre isso aqui e aqui.

domingo, 3 de junho de 2012

Nossos políticos nos representam muito bem*

Estamos muito acostumados a sair bradando nossa indignação contra a política atual, às vezes até desejando que uma bomba "limpe" o Congresso, ou conclamando os eleitores para anular o voto nas eleições. Estamos todos tão cansados e descrentes que já nem tentamos lutar, achamos que política e sujeira são sinônimos e que nada pode melhorar, apenas ficar menos pior, dependendo dos eleitos.
Não nos cansamos de admirar como são diferentes os parlamentares de "países desenvolvidos" (quem não viu este vídeo por aí?) e nos consternamos ao perceber que estamos tão longe desta realidade. Ás vezes até tentamos nos mobilizar, propagando que o nosso voto faz a diferença, que nas próximas eleições temos que nos informar, mas... isso dá tanto trabalho, e afinal de contas, só um voto não faz diferença, né?
Né. Nosso voto não faz diferença, porque a verdade é que estamos votando direitinho. Estamos escolhendo exatamente os políticos que nos representam, que mostram como somos de verdade. Somos assim: antiéticos, aproveitadores, espertos (no mau sentido), acostumados a dar um jeitinho pra nos safar dos problemas e nos orgulhar disso. Nós achamos absurdos os privilégios dos políticos, mas não admitimos nunca abrir mão dos nossos, por mais que saibamos que não temos direito a eles.

Nós admiramos a truculência da polícia em filmes e na vida real, expulsando os pobres do Pinheirinho e descendo o sarrafo nos estudantes maconheiros, mas ficamos indignados quando um amigo é abordado numa blitz com essa mesma truculência;

Ficamos irritados com a arrogância dos políticos, mas basta termos um cargo um pouquinho acima na hierarquia para tratarmos os subalternos como cachorros;

Somos contra o aborto, mas essa é a solução que sugerimos quando nosso filho adolescente engravida a namoradinha;

Achamos absurda a discriminação que os jogadores brasileiros sofrem no exterior, mas se vemos um negro de terno na porta de um restaurante, achamos que é o manobrista;

Protestamos contra a impunidade dos políticos, mas sempre recorremos das multas que levamos, até daquelas que sabemos que merecemos;

Xingamos os políticos e artistas que se recusam a passar pelo bafômetro, mas recorremos ao twitter para nos safar da blitz;

Somos contra a descriminalização da maconha, mas fumamos unzinho só pra relaxar.

Achamos que não há o menor problema em ter crucifixos nos órgãos públicos, mas reclamamos quando aparece um despacho perto de casa;

Somos contra a homofobia, desde que não apareça nenhum casal de viados se beijando na nossa frente;

Não queremos uma estação de metrô nas proximidades, pra não atrair gente diferenciada, mas exigimos que a empregada chegue no horário, não importa quantos ônibus ela tenha que pegar;

Deixamos os gringos pensarem que somos um povo alegre e cordial, mas vamos pra internet ameaçar as pessoas com idéias diferentes das nossas, de forma anônima;

Somos contra a distribuição de camisinhas nas escolas, mas temos um enfarto quando nossa filha adolescente engravida (e, claro, pagamos por um aborto clandestino, mas continuamos sendo contra o aborto!);

Ficamos indignados com a política de "uma mão lava a outra" do Congresso, mas se somos pegos de calça curta, ligamos praquele procurador amigo do nosso primo, pra quebrar nosso galho;

Estamos de acordo que o feminismo nem precisa mais existir, que as mulheres já são tratadas com igualdade, mas se uma delas se atrapalha no trânsito, somos os primeiros a gritar "volta pro fogão, Dona Maria!"

Choramos vendo os depoimentos dos torturados na ditadura, mas seguimos achando que nem foi tããão ruim assim, que foi uma ditabranda, coitados dos militares, se não torturassem os presos iam perder seus empregos;

Cansamos de falar que as mulheres tem direitos iguais, que conquistaram seu espaço, mas chamamos de puta e quase linchamos uma estudante que resolve se vestir com um vestido curto;

Apoiamos a tentativa da bancada evangélica de ditar regras e leis de acordo com suas convicções religiosas, mas ficamos muito incomodados com os mórmons batendo na porta de casa tentando nos converter à sua religião;

Choramos com o drama da mocinha da novela que ficou tetraplégica, pelas dificuldades que ela enfrenta, mas estacionamos na vaga de deficientes só um minutinho;

Protestamos contra um suposto estupro em um reality show, mas rimos do indivíduo que acha que mulher feia deveria agradecer por ser estuprada;

Ficamos chocados com as propinas e caixas 2 nas campanhas, mas temos sempre um agradinho pro seu guarda nos liberar numa boa;

Reclamamos do "povo dos Direitos Humanos", mas nos emocionamos com os filmes gringos que mostram pessoas quase executadas injustamente, salvas da injeção letal no último minuto graças ao empenho do povo dos Direitos Humanos.

Então é assim: a gente fala mal dos políticos, mas não olhamos pro próprio umbigo. Com que moral exigimos ética na política, se a gente não tem no dia a dia?

“Querer-se livre é também querer livres os outros”
Simone de Beauvoir

* post inspirado por este vídeo.